O novo sabor da América… segundo Trump

O caso da “Coca-Cola com fórmula by Trump” é mais do que um acontecimento curioso ou inócuo. É um exemplo real de como uma marca pode perder o controlo da sua narrativa ao deixar-se instrumentalizar por uma figura política.

A Coca-Cola anunciou esta semana uma nova versão do seu refrigerante clássico, feita com açúcar de cana, disponível apenas nos EUA. À superfície, parece uma simples decisão de produto. Mas o contexto revela algo mais: a mudança surge na sequência de declarações públicas de Donald Trump a favor do regresso à “fórmula original”, numa jogada carregada de simbolismo político.

E isto, em termos de branding, é uma armadilha...

Marcas globais não se podem dar ao luxo de parecer parciais

A Coca-Cola sempre se posicionou como símbolo de inclusão e universalidade. A sua força não vem apenas do sabor ou da distribuição global, mas da ideia de que pertence a todos. Do Natal à música pop, dos Jogos Olímpicos às celebrações familiares, a marca construiu-se como um arquétipo cultural neutro.

Aceitar, validar ou promover uma “fórmula by Trump” é abdicar disso. É transformar o produto num veículo ideológico. É escolher um lado, e, pior ainda, um lado polarizador.

Politização de produto: quando o rótulo carrega mais do que ingredientes

A questão não está no açúcar de cana. Está no símbolo.

A narrativa à volta da nova fórmula, amplificada por declarações de Trump e replicada nos media, associa a mudança à agenda Make America Great Again (conservadora, nacionalista, regressiva). A Coca-Cola passa, assim, de marca de consumo a marca com posicionamento. Não porque o tenha escolhido, mas porque deixou o controlo da sua narrativa escapar.

Esta associação gera segmentação emocional do público, desgaste reputacional fora dos EUA, inconsistência com a brand equity construída ao longo de décadas e percepção de oportunismo político.

Decisões tácticas com impacto estrutural

Mudar a receita original pode parecer uma decisão inofensiva. Mas fazê-lo com o selo simbólico de uma figura política muda tudo. É o tipo de acção que gera ruído no curto prazo e dano estrutural no longo.

A Coca-Cola já viveu isso com a “New Coke”, e falhou por mexer num ícone emocional. Mas aqui o erro é outro: não é apenas mexer na fórmula, mas entregá-la a um discurso ideológico.

E isso, para uma marca com vocação cultural global, é um risco colossal.

Marcas sob pressão política: um fenómeno em crescimento

O caso da Coca-Cola não é isolado. A relação entre marcas e poder político tem-se intensificado, e não é neutra. Nos últimos anos, vários gigantes globais tiveram de reposicionar as suas políticas internas, comunicações públicas e até escolhas comerciais, em resposta à nova realidade sociopolítica.

  • A Apple recuou ou silenciou temas de diversidade em certas apresentações públicas após pressões internas e ameaças de boicote por parte de grupos conservadores, especialmente em estados republicanos nos EUA.

  • A Google tem revisto a forma como apresenta resultados sobre género, raça ou temas identitários nos EUA, em parte para evitar novos confrontos legais e mediáticos, como aconteceu com a polémica sobre conteúdos em AI.

  • A Disney entrou num conflito direto com o governo da Florida (DeSantis), precisamente por se posicionar a favor de políticas inclusivas. O backlash foi económico e institucional.

  • A Bud Light sofreu boicotes e perdas em bolsa após uma campanha inclusiva e recuou. Esse recuo, por sua vez, gerou críticas do lado oposto, evidenciando como a tibieza no posicionamento pode ser pior do que tomar partido.

Estas decisões mostram que, hoje, as marcas já não comunicam num vácuo. Os líderes políticos interferem, direta ou indiretamente, nos discursos das marcas, através da sua influência económica (ameaça de boicotes, pressões legislativas, taxações), social (polarização da opinião pública, alavancagem mediática) e cultural (definição do que é “aceitável” ou “patriótico” num dado contexto).

Decisões tácticas com impacto estrutural. Quando o ADN de marca é posto em causa

No branding, tudo comunica. A origem dos ingredientes. O contexto do lançamento. As figuras associadas. E quando uma marca permite que o seu produto se torne um veículo de agenda política, o dano não está na garrafa. Está na confiança, com os consumidores, com os fãs, com os que sempre a viram como símbolo de pertença e neutralidade.

A Coca-Cola não é apenas um refrigerante. É um dos maiores símbolos de brand equity do século XX. O seu valor não vive do produto em si, mas do significado cultural acumulado, feito de publicidade icónica, memórias familiares, momentos partilhados e presença intergeracional.

Esse valor simbólico é o ADN da marca. E o ADN não se altera sem consequências.

Cada decisão que fragiliza essa identidade, seja por alinhamento político, incoerência estratégica ou oportunismo táctico, é um golpe nesse capital intangível. O que se perde aqui não é apenas reputação. É património emocional.

O sabor da América pode mudar. Os ingredientes também, Mas uma marca como a Coca-Cola nunca devia permitir que o seu ADN fosse reescrito por terceiros. Porque o que está em causa não é só uma receita, mas tudo o que ela representa, ou seja: felicidade numa garrafa.

Isto não é um anúncio.Esta peça é uma sátira publicitária. Não representa qualquer comunicação oficial da Coca-Cola, nem qualquer afiliação com figuras políticas. Qualquer semelhança com a realidade é pura ironia estratégica.


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Co-Branding: quando duas marcas valem mais do que uma