O dia em que deixámos de escolher, e começámos a ser escolhidos
O infotainment já substituiu a informação linear. O próximo passo? Um mundo onde o conteúdo de entretenimento está… em todo o lado.
A novela vertical e a era do infotainment
Vivemos um momento de mutação drástica: o telemóvel deixou de ser apenas veículo de comunicação ou canal de informação para se tornar o palco principal. Um palco de histórias, ficção, entretenimento e até consumo imediato. De ferramenta funcional e comunicacional passou a ser o próprio ecossistema cultural.
Nesse contexto, afirma-se um fenómeno incontornável: o infotainment, a fusão entre informação e entretenimento, em que a notícia já não se esgota na transmissão de factos, mas se converte em experiência envolvente, visual e emocional. O que antes era comunicação ou utilidade transformou-se em narrativa contínua, criada para prender o olhar, gerar partilha e disputar segundos de atenção num feed saturado de conteúdos, muitos deles já gerados por inteligência artificial.
Não surpreende, portanto, que a Globo tenha anunciado a sua entrada neste território: uma telenovela pensada de raiz para o formato vertical, transmitida no TikTok e no Globoplay.
Não se trata de adaptar um produto televisivo a um novo suporte, mas de criar uma narrativa nativa mobile, feita para deslizar ao ritmo do polegar.
Do telemóvel como canal ao telemóvel como palco
Durante anos falou-se em mobile first. Hoje, isso é apenas o ponto de partida e um verdadeiro must-have.
O telemóvel já não é apenas um local de consumo, mas um espaço de criação, produção e transformação da experiência mediática.
O formato vertical deixou de ser exceção para se tornar a norma.
As estatísticas confirmam a mudança: 79% do tráfego global da internet já é vídeo móvel. Mais de 75% dos vídeos são vistos em smartphones. O formato vertical gera 78% mais envolvimento e responde ao hábito de 94% dos utilizadores que mantêm o dispositivo na vertical, garantindo maior tempo de visualização.
A verticalização é especialmente dominante entre Geração Z e Millennials, que consomem rapidamente conteúdos em TikTok e Reels. Para estas audiências, o entretenimento vertical é a linguagem natural.
De mobile first a digital everywhere
Durante mais de uma década, mobile first foi o mantra do marketing e da tecnologia. Significava priorizar o smartphone como ponto de entrada, adaptando tudo ao ecrã mais pequeno (e sem esquecer o tempo em que tudo tinha de ser responsive).
Esse paradigma evoluiu. A era atual, marcada pela integração de IA e pela ultra-personalização, é a do digital everywhere, onde o digital deixou de estar confinado a um dispositivo e passou a ser presença constante. Está no relógio, no carro, em casa, nos espaços públicos e em todas as interações quotidianas. O consumidor não entra no digital, vive integrado nele.
Este movimento exige que as marcas criem ecossistemas narrativos fluidos e omnicanal, em vez de apenas adaptar conteúdos, e que passem a medir a atenção em tempo de contacto total, não apenas em tempo de ecrã.
A fronteira entre comunicação, entretenimento e consumo desapareceu. O que importa é a experiência contínua que acompanha a vida de cada consumidor.
É neste quadro que as novelas verticais ganham força: não são conteúdos mobile-friendly, mas sim narrativas nativas de um mundo digital sem fronteiras.
Os pioneiros do formato vertical
O formato vertical não nasceu na Globo. O Snapchat inaugurou esta narrativa em 2013, demonstrando que o ecrã podia ser usado de outra forma. Mais tarde, Instagram Reels e TikTok massificaram o consumo rápido e fragmentado.
No mercado asiático, a Tencent Video produziu em 2018 a primeira série vertical, antecipando a tendência que hoje se consolida globalmente. Mesmo o Quibi, apesar do insucesso, ajudou a validar a procura por produções premium verticais.
O que parecia uma curiosidade tornou-se inevitável: o vertical deixou de ser tendência para se afirmar como novo paradigma audiovisual.
O impacto para o marketing e para as marcas
Esta transformação levanta uma questão central: como podem as marcas comunicar num mundo em que a narrativa se constrói em ecrãs verticais e episódios de apenas alguns minutos?
/ Realinhamento da atenção Se antes a métrica era a audiência em horário nobre, hoje a moeda é a retenção por segundos. Cada frame conta.
/ Publicidade integrada Já não existe espaço para intervalos tradicionais. As marcas precisam de se fundir na narrativa, seja em product placement, branded storytelling ou inserções subtis. Mesmo na televisão tradicional, os formatos estão a mudar: surgem inserções laterais, sobreposições gráficas e integrações dinâmicas enquanto o programa decorre, precisamente porque o intervalo publicitário perdeu eficácia. O público já não espera. Passa à frente, muda de canal, desliza o ecrã. O desafio é entrar na história sem interromper a experiência.
/ Testes em tempo real Os micro-dramas permitem iteração contínua: personagens, diálogos e até produtos podem ser ajustados em função da reação do público.
/ Diferenciação estratégica Em feeds saturados de conteúdos semelhantes, a marca que entrega narrativa contínua constrói presença e fidelidade.
Boas práticas e recomendações estratégicas
Então que devem as marcas fazer para responder a esta nova lógica de infotainment e conteúdos verticais? Vamos detalhar algumas práticas essenciais:
/ Captar a atenção nos primeiros três segundos. O público decide de imediato se continua ou desliza para o próximo conteúdo. Ter um hook nos primeiros segundos é a regra de ouro (que já não é tão nova).
/ Garantir impacto visual mesmo sem som. A maioria consome estes vídeos em silêncio, por isso legendas e gráficos são indispensáveis.
/ Criar personagens fortes e memoráveis. A ligação emocional deve ser instantânea.
/ Estruturar narrativas em marcos curtos. O formato modular permite testar, ajustar e reagir em tempo real.
/ Integrar a marca de forma orgânica. O público rejeita cada vez mais a publicidade intrusiva. O produto deve fazer parte da história e ser natural na sua integração.
/ Valorizar métricas relevantes. O que importa não são as visualizações brutas, mas a retenção e a taxa de conversão.
/ Pensar de forma cross-plataforma. Cada episódio pode ser distribuído em TikTok, Reels ou Shorts, adaptado sem perder coerência.
/ Planear em sprints criativos. Lotes de episódios com cliffhangers estratégicos garantem consistência e envolvimento.
A próxima fronteira: conteúdos gerados por inteligência artificial
A chegada de ferramentas como o Sora 2, capaz de gerar filmes inteiros com base em prompts de texto, e de soluções como o Nano Banana, que combinam vídeo generativo e personalização, anuncia uma nova fronteira para o entretenimento e a produção de media.
Se o infotainment fundiu informação e emoção, o próximo salto será a hiperpersonalização, com conteúdos criados à medida de cada indivíduo.
Num futuro próximo, as plataformas deixarão de oferecer catálogos universais como Netflix ou Apple TV. Cada utilizador poderá ter séries e filmes gerados de raiz, de acordo com as suas preferências, histórico e comportamento algorítmico.
Trata-se do auge da personalização: a união entre tecnologia, criatividade e dados para criar experiências exclusivas. Uma vanguarda da ultra-personalização, onde cada narrativa é única, irrepetível e profundamente alinhada com quem a consome.
E se isto não for o limite máximo que as marcas podem alcançar, é difícil imaginar o que será.
Mas a questão que se impõe é outra: como conseguirão as marcas comunicar num mundo em que o entretenimento é criado individualmente, moldado por algoritmos e desenhado para uma só pessoa?
A novela vertical da Globo não é apenas uma experiência pontual, mas um sinal de que o infotainment atingiu a maturidade. Informação e entretenimento deixaram de ser esferas separadas e fundiram-se no dispositivo que domina o quotidiano: o telemóvel.
De mobile first a digital everywhere, o mundo caminha agora para uma era em que a inteligência artificial cria conteúdos personalizados e o entretenimento se torna individualizado, sob medida e algorítmico.
O desafio para as marcas será manter relevância e significado num cenário onde cada consumidor habita o seu próprio universo mediático.
Como comunicar num mundo em que o entretenimento estará, literalmente, em todo o lado, e tailor made segundo o algoritmo de cada um?
Se Orwell via o futuro como um ato de opressão, hoje ele materializa-se num gesto de sedução: o algoritmo que oferece exatamente o que queremos, antes de sabermos que o queríamos. O futuro já não se impõe como uma bota a esmagar um rosto, mas como um ecrã que o acaricia, até o possuir por completo.
“If you want a picture of the future, imagine a boot stamping on a human face, forever.”