A imagem que não existe: e se a próxima campanha da sua marca não tivesse ninguém real?

Esta semana, na edição de Agosto da VOGUE US (de 2025), uma imagem correu o mundo: uma mulher loira, de expressão suave e estética perfeita, irrepreensível, vestida com um conjunto floral de verão e um vestido justo de malha da Guess. Nada de novo até aqui, não fosse o facto de esta mulher não existir.

A imagem foi criada por inteligência artificial. A modelo é um avatar digital, produzido por uma empresa chamada Seraphinne Vallora, criada por duas jovens empreendedoras que investiram mais de cem mil euros na criação de avatares hiper-realistas para campanhas de moda. A imagem integrou uma campanha da GUESS e foi publicada na edição de agosto da VOGUE US. O resultado foi imediato: uma avalanche de críticas.

Não foi apenas a origem artificial da modelo a gerar discussão, mas a ausência de diversidade no visual, a uniformização dos traços, o reforço de padrões de beleza já ultrapassados, e o simbolismo de um mundo onde nem as modelos precisam de ser reais. E, no meio de tudo isto, uma questão maior começa a surgir: o que acontece à credibilidade de uma marca quando aquilo que mostra deixa de ser verdade? E onde ficou todo o trabalho feito de inclusão e diversidade dos últimos anos?

Esta discussão ultrapassa o universo da moda. Entra no território do branding, da cultura de marca, da comunicação visual e da confiança simbólica que as marcas constroem com o seu público. Porque as imagens que usamos não são neutras. São escolhas que revelam o que valorizamos, o que acreditamos e como queremos ser percecionados.


Entre a eficiência e a autenticidade

O uso de modelos gerados por IA pode parecer uma inovação prática: reduz custos, elimina sessões fotográficas, permite controlo total sobre o resultado. Mas aquilo que se ganha em eficiência perde-se, quase sempre, em autenticidade. As imagens tornam-se previsíveis, higiénicas, chapa 5. A emoção desaparece. A ligação humana dissolve-se e é apenas um boneco. Porque na imperfeição natural também existe beleza.


Photoshop ou simulação?

As criadores alegaram que não era diferente do uso de photoshop em modelos reais. Mas será que não é?

E isso é especialmente grave num contexto onde as marcas competem por atenção, mas também, e sobretudo, por confiança. Quando uma marca escolhe um rosto que não é real, está a comunicar muito mais do que estética. Está a definir um posicionamento. Está a dizer o que considera representativo. Está a escolher entre a verdade e a conveniência, entre autencidade e likes.


O risco da incoerência de marca

É aqui que a questão se torna inescapável: imagine que marcas como a Dove, que construíram a sua identidade em torno da autenticidade, da diversidade e da representação real, como no caso da campanha “Real Beauty” (que tem 20 anos), começarem a substituir pessoas por avatares. Perdem não só credibilidade, mas também coerência. O que era uma afirmação de propósito torna-se uma contradição visível. A marca deixa de ser aquilo que defendia, e o público percebe.

Ter uma modelo que não existe com roupas da coleção real da Guess na VOGUE passa a mensagem que a moda não é feita para qualquer um. É para corpos cada vez mais perfeitos e fictícios.


Branding não é só o que se vê, é o que se sente

Mais do que uma questão ética, este é um desafio estratégico. As produções fotográficas sempre foram muito mais do que logística: são um espaço de expressão criativa, uma afirmação estética e um terreno onde as marcas se posicionam cultural e emocionalmente.

Todo o processo, da seleção dos modelos à escolha das localizações, da direção de arte ao styling, é parte da construção de uma identidade visual coerente com o ADN da marca. E é também um trabalho de equipa, onde cada elemento — fotógrafo, stylist, makeup artist, direção criativa — contribui com um olhar, uma intenção, uma leitura do universo da marca. É nesse cruzamento de competências e sensibilidades e trabalho de equipa que nasce a autenticidade. E é aí que uma marca se distingue, não apenas pelo que mostra, mas pela forma como escolhe mostrar.

Eliminar esse processo não é apenas eliminar o humano da imagem, é retirar humanidade da própria marca.


Dove x Getty

E é também ignorar o poder da imagem como ferramenta de inclusão. Quando a Dove se uniu à Getty Images e à Girlgaze para criar o projeto #ShowUs, fê-lo com um objetivo claro: contrariar a hegemonia visual que, durante décadas, excluiu mulheres negras, corpos não normativos, pessoas com deficiência ou com identidades fora do binário de género. O projeto reuniu mais de 10 mil imagens criadas por e para mulheres e pessoas não binárias, uma biblioteca aberta que oferece uma visão mais inclusiva da beleza para ser usada por marcas, media e anunciantes. Não foi apenas uma coleção de imagens. Foi uma correção de rota.

Esse banco de imagens não foi apenas uma biblioteca, foi um manifesto, e é isso que torna o uso da IA, sem intenção crítica, tão perigoso: pode inverter avanços conquistados com muito mais do que algoritmos, conquistados com coragem, propósito, verdade e muito tempo.




O exemplo da Victoria’s Secret

O exemplo da Victoria’s Secret é outro sinal claro de como a imagem de marca pode colidir com a cultura se não acompanhar a mudança. Durante anos, a marca construiu o seu império com base numa estética hipersexualizada, aspiracional e inacessível. Mas esse imaginário começou a ruir à medida que o discurso social exigia mais inclusão, mais autenticidade, mais verdade.

Depois de anos de críticas e perdas de relevância, a marca que construiu o seu império sobre um ideal inatingível reformulou a sua comunicação, afastando-se dos “anjos”, dos modelos com corpos normativos, pele perfeita e sensualidade formatada, amplificada por desfiles milionários e soutiens “bombshell”, e integrou modelos reais, de diferentes idades, corpos e histórias. A pressão social, aliada à queda nas vendas e à mudança de mentalidade das novas gerações, obrigou a essa reformulação.

A primeira grande viragem surgiu em 2021 com o lançamento do VS Collective, um programa com figuras como Priyanka Chopra, Paloma Elsesser e Megan Rapinoe, pensado para mostrar uma nova definição de beleza. Nos anos seguintes, a marca lançou campanhas mais diversas e, em 2024, apresentou a Adaptive Collection, uma linha de lingerie funcional, modular e desenhada em colaboração com pessoas da comunidade com deficiência. Foi a primeira vez que a marca desenhou peças adaptadas a diferentes necessidades físicas, vendidas tanto pela linha principal como pela sub-marca PINK.

Este reposicionamento é mais do que simbólico. É estratégico. Revela um entendimento claro de que a estética idealizada já não cria identificação. Quando a imagem deixa de incluir, a marca deixa de ser relevante. E quando a promessa da marca se afasta da experiência real das pessoas, instala-se a incoerência. Como disse o CEO Martin Waters: “We are on an incredible journey to become the world’s leading advocate for women.”


A mudança foi estratégica, mas também inevitável: quando a estética idealizada já não cria identificação, é a própria marca que se torna invisível. A confiança não se constrói com ficção, constrói-se com espelhos, com projeções do que se passa à nossa volta, do mundo que nos rodeia. E é por isso que a aposta na IA, sem consciência crítica, sem cunho e curadoria humana pode ser mais regressiva do que visionária.

O momento charneira das marcas

Estamos a viver um momento charneira, onde as ferramentas se tornam protagonistas. Mas uma marca não é feita de ferramentas. É feita de intenção, de valores, de presença cultural. A IA pode ser uma aliada poderosa, mas não pode ser a narradora da história de uma marca.

Porque uma marca que abdica da sua linguagem humana corre o risco de se tornar invisível, ou, pior, irrelevante. Só mais uma. E a confiança não se constrói com ficção. Constrói-se com espelhos. Com verdade. Com compromisso. Com o mundo à nossa volta. E é por isso que o uso de modelos gerados por IA, sem sentido crítico, pode parecer inovação, mas muitas vezes é apenas uma nova forma de exclusão.

Quando a ligação humana se torna o ativo mais valioso

À medida que a tecnologia de IA se democratiza, torna-se cada vez mais banal criar anúncios e campanhas visuais geradas por algoritmos. O que era antes visto como trabalho de charneira, como a engenharia, gestão, análise matemática aplicada, arrisca tornar-se redundante numa era de automação. O valor real passa a estar no que é intrinsecamente humano: a criatividade, a sensibilidade estética, a conexão emocional, a capacidade de contar histórias com propósito. A fotografia de marca, o design narrativo, o cuidado com a autenticidade, tudo o que reforça o vínculo entre marcas e pessoas, e adquire novo peso estratégico. Esse cenário inverso à lógica da eficiência técnica consagra a criatividade e a ligação humana como os grandes tesouros competitivos do branding moderno.

O relatório do Fórum Económico Mundial projeta que até 2030 a IA e tecnologias afins vão transformar 86 % das empresas, criando cerca de 170 milhões de novos empregos e tornando redundantes 92 milhões de cargos existentes. Isso implica uma redistribuição clara do valor económico: automatizam‑se tarefas, mas intensificam‑se as necessidades de ligação humana autêntica nas marcas. A fotografia de marca, a narrativa visual, a construção de identidade, tudo o que reforça o vínculo entre marcas e pessoas vai ganhar centralidade estratégica. Ou seja, não é uma questão de se vamos usar IA, mas quando e como vamos usá‑la.

E quanto mais isso acontecer, os talentos que dominarem a criatividade, a emoção e a ligação humana vão ser os verdadeiros vencedores do mercado de trabalho.

A revolução não é tecnológica. É humana.

Este não é um apelo ao conservadorismo, mas um um convite à consciência. Há espaço para explorar, experimentar, integrar IA de forma criativa, estratégica e produtiva. Mas há também a obrigação de garantir que aquilo que mostramos, em que acreditamos continua a ter verdade, contexto e propósito. Que o mundo é feito de pessoa e, principalmente, para pessoas.

Num mundo saturado de imagens perfeitas, talvez a nova revolução criativa seja voltarmos a mostrar o que é real e com todas as imperfeições. Porque o normal não é o 86-60-86, nunca foi e nunca será.

A beleza que não existe pode impressionar, mas a beleza com verdade é a única que cria ligação duradoura e a que vale a pena.

The keys to brand success are self‑definition, transparency, authenticity and accountability.”
— Simon Mainwaring



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