Black Friday: da sexta-feira ao mês inteiro
A Black Friday, como o próprio nome indica, começou como um único dia de excitação comercial. Hoje ocupa um mês inteiro. Alargou-se, esticou-se e tornou-se um estado de espírito. Uma espécie de calendário paralelo onde todos os dias parecem a mesma promessa.
A data deixou de viver da urgência e passou a viver da exaustão. O consumidor recebe estímulos constantes, campanhas infinitas e descontos que se repetem. E quando tudo está em promoção, o pensamento muda. O valor deixa de estar no preço e passa a estar na confiança. A pergunta já não é “quanto custa?”, mas “porque é que isto merece a minha atenção?”
O novo consumidor
Segundo a Boston Consulting Group, 74% dos consumidores mundiais planeavam aproveitar as promoções de novembro em 2023, mais 7 pontos percentuais do que no ano anterior. A procura começou mais cedo: mais de 60% iniciou a pesquisa em outubro ou início de novembro e mais de 70% ainda não tinha escolhido marca nem produto.
A janela de influência aumentou. A exigência também.
Num contexto de inflação, 49% dos consumidores passaram a comparar preços com mais frequência e 41% avançam para compra sobretudo por causa das promoções. Para 68%, o objetivo passa por antecipar compras de Natal.
Mas será que a Black Friday deixou de depender do impulso e começou a viver da estratégia do consumidor?
O cérebro e o consumo: entre impulso e cálculo
Daniel Kahneman explicou esta dualidade em “Thinking, Fast and Slow”. O Sistema 1 reage no imediato. O Sistema 2 pondera com calma. A Black Friday fala ao Sistema 1. Urgência, contagem decrescente, caixas a fechar, escassez. A oportunidade domina o raciocínio.
Robert Cialdini estudou o princípio da escassez: quanto mais rara parece uma oferta, maior o valor atribuído. Porém, quando todas as campanhas usam escassez contínua, o efeito inverte-se. O consumidor deixa de sentir oportunidade e passa a sentir saturação.
A repetição alimenta a fadiga cognitiva. Demasiadas escolhas. Demasiadas notificações. Demasiadas micro-decisões. O cérebro entra em sobrecarga e abranda, e quando abranda, a compra perde intenção.
A Black Friday expandiu-se tanto que começou a desafiar a própria lógica que a fez crescer.
Gastos e comportamento de compra
De acordo com o inquérito anual da Deloitte em 2023, os consumidores planeavam gastar em média 567 dólares entre Black Friday e Cyber Monday em 2023, um valor cerca de 13% acima de 2022. As compras online ganharam terreno: cerca de 60% pretendia comprar online e 40% em lojas físicas.
Os Millennials dominaram o investimento e muitos assumiram que compravam também para si próprios, reflexo de uma economia emocional que mistura compensação, stress e gratificação imediata.
O consumo já não é apenas transação. É gestão emocional.
Lições estratégicas para marcas que querem manter relevância
A McKinsey identificou um ponto de viragem decisivo: metade dos consumidores norte-americanos já tinha iniciado as compras de Natal no início de novembro. A época de consumo deixou de funcionar por janelas fixas. Funciona por antecipação, preparação e intenção. A Black Friday já não abre portas, e passa a acompanhar um movimento que começou antes.
Neste cenário, o princípio de Cialdini torna-se ainda mais evidente. Um estímulo repetido perde impacto. Quando todos anunciam urgência, a urgência deixa de significar algo. A confiança conquista-se por consistência e não por insistência.
A evolução do consumo também mostra outra tendência importante. As gerações mais jovens recorrem cada vez mais ao modelo Buy Now, Pay Later, mas continuam a procurar o toque humano nas lojas físicas. A tecnologia simplifica, acelera e remove fricção. A presença física valida, dá segurança e completa o ciclo emocional da compra. O consumidor quer eficiência, mas também quer vínculo. Quer flexibilidade no pagamento, certeza na experiência e sentir que pertence a uma tribo.
A decisão tornou-se híbrida. Lógica na pesquisa, emoção na escolha. O consumidor compara preços, lê avaliações, segue criadores, usa ferramentas de análise e consulta plataformas de comparação. No entanto, escolhe marcas que representam algo, que mostram um ponto de vista e que comunicam de forma autêntica e honesta.
É neste território que as marcas ganham relevância: com clareza antes da oferta, valor antes do incentivo e conexão antes da conversão.
O impacto nasce quando a marca escolhe servir com intenção, em vez de competir por volume. E é essa diferença que cria lealdade num mercado saturado de estímulos.
Fadiga ou transformação?
A Black Friday expandiu-se até ao ponto em que começou a pôr à prova a própria promessa. A Which?, organização britânica independente dedicada à defesa do consumidor, analisa milhares de preços ao longo do ano e identifica um padrão recorrente: muitas promoções apresentadas como “exclusivas” têm valores semelhantes aos praticados noutros períodos. Esta constatação enfraquece a confiança e obriga o consumidor a olhar para cada desconto com outra lente.
Este ano, em 2025, a associação Citizen’s Voice avançou com uma ação popular contra a FNAC, alegando que uma câmara fotográfica terá sido anunciada como promoção a um preço superior ao valor anteriormente praticado. O caso reforça a ideia já evidenciada em estudos internacionais: o problema não está apenas na intensidade das campanhas, mas na forma como algumas marcas constroem a perceção de desconto.
Este tipo de episódios acelera um movimento claro. Cresce o ceticismo. Aumenta a exigência. O consumidor responde com mais análise e menos impulso. Pesquisa, compara, consulta históricos de preços e usa a Black Friday como instrumento, não como estímulo emocional.
A decisão adquire outra profundidade. Menos vertigem e mais intenção. O valor deixa de viver na sensação imediata e passa a viver na coerência que o consumidor encontra na marca.
O efeito sente-se de imediato. A atenção fragmenta-se, a tolerância ao exagero diminui e a autoridade das marcas fica exposta. O consumidor atual responde com maior lucidez. A decisão afasta-se da vertigem e aproxima-se da consciência. O desconto deixa de comandar o ritmo e passa a ser apenas uma variável dentro de um processo mais informado.
O futuro da Black Friday
A resposta não está em mais campanhas, mais estímulos ou mais contagens decrescentes. Está em verdade. A próxima fase não depende de campanhas mais ruidosas. Ganha força com transparência. Descontos reais, comunicação clara, storytelling honesto e experiências que respeitam tempo, atenção e inteligência emocional. Cumprir o que se promete e prometer alinhado com o seu proósito.
O impacto cresce quando a marca assume a Black Friday como extensão da sua cultura, e não como truque momentâneo.
O valor não nasce no preço riscado mas na confiança e a confiança continua a ser o ativo mais escasso, e mais poderoso, do mercado.
“Trust is built on telling people the truth.”